quarta-feira, 26 de março de 2014

Eles que emigrem

Regressavas de França de vez. Os carros não tinham caminho para chegar à nossa porta, mas a mãe sentiu o táxi parar ao fundo da ladeira e largou alegria quando me anunciou:
- Foi o pai que chegou, vai esperá-lo!
É a primeira memória que guardo de ti e talvez da vida! Eu, escondido debaixo da figueira, a ver-te subir, de mala na mão, cada vez mais perto, a timidez a consumir-me o desejo e a coragem de correr para um homem alto e com bigode!... Acocorei-me por detrás do carro de bois que o ti Manel tinha estacionado à porta dele e vi-te a passar, por entre um dos dois buracos da roda de madeira, sem dares por mim!... Vi-te beijar a mãe e logo a seguir perguntar:
- E o nosso menino?!
E a mãe a descobrir-me e a apontar:
- Olha ali!
E tu, largando a mala e a correr para este, então fedelho, envergonhado e a levares-me ao colo e a mãe a dizer-me, tal como a ouço ainda agora:
- Não chores filho! Já tens pai!
Depois seguiram-se anos e uma casa cheia de filhos até que, com dois meses de reforma recebidos…
Mas, nem era disto que eu queria falar agora! Eu queria recordar-te como, apesar de mortais, nós, os da nossa linhagem, somos duros!
Ensinaste-me a decorar a data em que a avó nasceu porque me a recordavas sempre que passávamos a Alenquer - havia uma fábrica que se avistava longe e que tinha esse ano registado numa empena. Ainda hoje esse ano me serve de referência para me localizar melhor na história: “100 anos antes da minha avó nascer”, “50 anos antes da minha avó nascer”, “quando a minha avó nasceu”, “quando a minha avó tinha dez anos”…
A avó Gracinda nasceu em 1888, casou com 14 anos e tinha seis filhos quando veio a pneumónica – levou-lhos todos! A avó Gracinda não tomou anti depressivos! Teve mais sete! Não havia cama para todos? À medida que iam crescendo iam sendo alojados no palheiro! Não havia mesa para todos? Punham a tigela em cima dos joelhos à lareira! Não havia comida para todos? Paciência! Deus prometia dias melhores!
Quando eu saí de casa, com dez anos, a avó deu-me 50 escudos! É o último gesto que recordo dela!
Pois lembrei-me disto pai, talvez por ser 19 de Março, talvez porque tenho pensado em emigrar e encontro nestas pequenas histórias de família força para não o fazer. Também, se mais razões não houvesse, só o facto de eles nos aconselharem a partir, já é razão suficiente para ficar.


Luís Neves
in Notícias de Ourém, 21 de Março 2014

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