Reorganização Administrativa do Território das Freguesias
I
O projeto de lei votado pretende culminar um processo legislativo visando a extinção de milhares de freguesias. De facto, considerando que são extintas todas as freguesias por agregação ou por alteração territorial, mesmo aquelas que venham a ser consideradas como sede da eventual nova freguesia, a extinção abrange mais de 2000 freguesias. É uma reestruturação radical do mapa administrativo do país exigindo um debate e um consenso que esteve totalmente ausente deste processo.
O processo de extinção de freguesias insere-se num vasto ataque ao poder local democrático, designadamente com o garrote financeiro das autarquias, o condicionamento das suas opções de gestão, a limitação da sua autonomia de organização e estruturação, a lei dos compromissos, o chamado “PAEL”, os sucessivos orçamentos do Estado ou as propostas já apresentadas relativas à retirada de competências aos municípios em favor de entidades supramunicipais sem legitimidade democrática.
O poder local – e em particular as freguesias como autarquia mais próxima das populações – tem um papel decisivo na participação democrática do povo, na proximidade entre eleitos e eleitores, na multiplicação eficaz das verbas disponíveis para o investimento, na resolução de problemas concretos das comunidades e do território, na representação das populações perante outras instituições, designadamente a administração central. A grande maioria dos eleitos de freguesia exerce as suas funções sem beneficiar de remuneração a tempo inteiro ou a meio tempo.
Por todas estas razões e por constituir uma afronta às identidades mais profundas do povo português, das comunidades e do território, a contestação das populações tem sido forte e determinada, também por terem consciência que a eliminação das freguesias se segue ou antecede o encerramento de outros serviços, por exemplo na área da saúde e da educação.
Trata-se de um processo que excluiu e ignorou a participação das autarquias (com exceção dos municípios que se tenham pronunciando aceitando as condições pré-determinadas pelo Governo e pela maioria), não considerando de nenhuma forma as numerosas deliberações dos órgãos das freguesias, enquanto autarquias visadas pela reforma. Mesmo quanto aos municípios, das 277 Assembleias Municipais que se poderiam pronunciar sobre a agregação de freguesias (excetuando-se as das Regiões Autónomas, de Lisboa e dos municípios já com apenas 4 freguesias e nenhuma com menos de 150 habitantes), apenas 48, isto é 21%, se pronunciaram com alguma concordância com este processo e os seus objetivos.
A criação de uma Unidade supostamente técnica para branquear e subscrever as decisões do Governo, de extinção de milhares de freguesias, foi mais um aspeto da degradação política e democrática neste processo.
Os autarcas e as populações contestaram vivamente os falsos argumentos usados pela maioria PSD/CDS e o Governo e denunciaram a mistificação deste processo. As freguesias não são significativas no plano da despesa pública (menos de 0,1% do Orçamento do Estado). As freguesias podem e devem ter mais competências, mas para isso não precisam de ser agregadas; aliás não há, a não ser na lei de reorganização administrativa da cidade de Lisboa, qualquer nova legislação aprovada atribuindo novas competências às freguesias e mesmo uma proposta de lei entregue pelo Governo na Assembleia da República, mas não votada, não introduz alterações muito significativas nesta matéria. Não há igualmente uma razão de falta de massa critica nas freguesias, que não se pode obter sacrificando a proximidade; se fosse essa a razão por que se teriam de agregar freguesias já com 15 ou 20 mil habitantes criando mega freguesias com mais de 30 ou 40 mil habitantes, a par de outras com áreas geográficas que chegam a ser superiores à ilha da Madeira.
Importa ainda referir que muitas das freguesias que agora se pretendem extinguir, especialmente nas zonas urbanas, foram criadas nos últimos anos por corresponderem a evidentes necessidades de acompanhamento do desenvolvimento do território e da sua boa administração.
Estas e outras razões justificariam por si só o nosso voto contra o projeto de lei em causa.
II
Mas acontece que às razões de política de descentralização e de organização administrativa do Estado atrás referidas, se somam neste projeto graves problemas jurídicos.
Estes problemas têm origem num processo que quis arrumar “a régua e esquadro” uma matéria que é complexa e delicada, definindo previamente e de forma não fundamentada os objetivos a atingir em matéria de eliminação de freguesias, independentemente das características e da história de cada território.
O projeto de lei foi apresentado no dia 30 de Novembro para um agendamento potestativo do PSD e do CDS no dia 6 de Dezembro (direito que não se questiona). Contudo o projeto sofreu significativas alterações apenas disponibilizadas véspera do debate, com prejuízo do seu conhecimento e da correção e transparência do mesmo. Esta situação de irregularidade gritante tem certamente origem no facto de, sendo o projeto assente, conforme estipula a lei 22/2012, de 30 de Maio, na proposta da Unidade Técnica, esta só ter sido concluída no dia 3 de Dezembro (vide relatório final da UTRAT). Isto é o projeto foi entregue três dias antes de estar concluído o documento que lhe serve de fundamento.
Por outro lado a lei que origina este processo, a já referida Lei 22/2012, de 30 de Maio, foi desde logo desrespeitada quando, na sequência da não promulgação pelo Sr. Presidente da República do decreto anteriormente aprovado pela Assembleia da República, a Lei 56/2012, de 8 de Novembro, sobre a “Reorganização administrativa de Lisboa” foi aprovada sem seguir o procedimento ali previsto.
Se o atual projeto PSD/CDS chegar a entrar em vigor passaremos a ter no nosso país pelo menos seis regimes diferentes para as freguesias, quanto à sua dimensão, competências e financiamento:
(1) o regime aplicado às freguesias de Lisboa, previsto na própria Lei n.º 56/2012, de 8 de Novembro, que define competências próprias e diferenciadas para as freguesias e estabelece desde logo no seu artigo 17º os montantes do seu financiamento;
(2) o regime das freguesias das Regiões Autónomas, que se manterá inalterado enquanto as respetivas Assembleias Legislativas Regionais não propuserem a sua alteração;
(3) o regime das freguesias cujos municípios optaram por não colaborar no processo de extinção que mantêm para já os mesmos moldes de financiamento e competências;
(4) o regime das freguesias agregadas cujos municípios participaram ativamente na proposta de extinção, que beneficiarão de mais 15% de financiamento até final do próximo mandato;
(5) o regime das freguesias não sujeitas a agregação mas cujos municípios participaram ativamente na extinção de freguesias naquela circunscrição, que não terão bonificação de 15% (ficando assim um município participante no processo com dois regimes de financiamento das suas freguesias);
(6) o regime das freguesias dos municípios com quatro freguesias ou menos que, não estando obrigados a extinguir freguesias ficam de fora dos parâmetros do projeto de lei agora aprovado, designadamente não tendo acesso à bonificação de financiamento prometida.
Registe-se ainda em matéria de financiamento que, para além da já referida discriminação de 15% das freguesias agregadas por vontade dos municípios (mesmo que contra a sua própria vontade), está por aferir que efeito terá no financiamento das novas freguesias a agregadas uma futura lei das finanças locais, aliás já anunciada pelo Governo. É que, apesar de o n.º1 do artigo 8º do projeto agora aprovado garantir neste momento que o financiamento é a soma dos montantes atribuídos até aqui às freguesias agregadas, é certo que a aplicação de critérios geográficos e populacionais a um novo mapa de freguesias tenderá no futuro a diminuir esse financiamento global.
Refira-se ainda que este projeto, cujo objeto, definido no artigo 1.º é a reorganização das freguesias (“A presente lei dá cumprimento à obrigação de reorganização administrativa do território das freguesias constante da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio.”), tem incluída uma alteração do território de municípios para o qual não está habilitado pela Lei 22/2012, de 30 de Maio, que lhe serve de referência. Aliás a matéria em causa – transferência da freguesia do Pombalinho do município de Santarém para o município da Golegã – não estava até quase ao final da sua votação na especialidade, sequer referida no articulado, pretendendo os autores da iniciativa que se processasse a alteração através dos mapas dos municípios, em condições que adiante referiremos. A inclusão à última hora de um novo número 5 no artigo 3º não vem resolver esse problema porque não se pode enxertar numa lei de reestruturação de freguesias, que pretende cumprir a Lei 22/2012, de 30 de Maio, uma alteração de território de municípios, por serem evidentes os problemas de segurança jurídica nessa matéria.
Uma outra questão importante é a da sede das novas freguesias agora propostas. É que, desde logo, a definição da sede é um importante elemento para a avaliação dos habitantes do seu território até para as suas decisões no plano eleitoral. Nos casos de agregação/extinção de freguesias essa sede não está definida antes das eleições, apenas supletivamente funcionará a indicação do quadro do anexo I se não houver decisão em tempo oportuno após as eleições dos órgãos da freguesia. Por outro lado existem diversas formas de definição de sede, umas com um endereço definido (casos de Amadora, Fafe, Guimarães, Mondim de Basto e em parte Porto de Mós) e outras apenas com a localidade. Finalmente, nos municípios de Peso da Régua e Vila Nova de Gaia existem definições de sede rotativa ou repartida que não têm qualquer base legal, porquanto a própria Lei 22/2012, de 30 de Maio estabelece no seu artigo 9º n.º 2 que “A nova freguesia criada por agregação constitui uma nova pessoa coletiva territorial, dispõe de uma única sede e…”. Aliás se essa possibilidade estivesse prevista na lei, provavelmente outros municípios teriam adotado soluções semelhantes.
A insegurança jurídica existe também quanto à cessação ou continuidade jurídica das freguesias a extinguir. Não se compreende o sentido útil do artigo 4º, referente apenas às freguesias criadas por agregação, não referindo, ao contrário do artigo 9º, as criadas por alteração territorial. A questão agrava-se ainda mais porquanto este artigo, no seu n.º 3 refere como freguesias a extinguir as constantes na coluna A do anexo I e a consulta desse anexo revela que, em vários municípios (aqueles em que há extinção de freguesias por alteração do território) esse elenco não está definido, não se sabendo portanto com rigor que freguesias são extintas e podendo até, no limite, ser suscitada a questão de virem coexistir juridicamente no mesmo território novas freguesias entretanto criadas e freguesias atuais que em nenhum momento são explicitamente extintas.
Estão também já detetadas ambiguidades insanáveis na redação do diploma aprovado, podendo ter-se a forte suspeita que num processo conduzido desta forma, apesar da sua complexidade, outras existirão. É o caso da freguesia de Varziela no município de Felgueiras que não consta da coluna das freguesias a extinguir (A) do anexo I, constando sim da coluna das freguesias a manter (D), mas constando em simultâneo da designação de uma das Uniões de freguesias a criar (coluna B).
Um dos mais graves problemas do diploma aprovado é o dos mapas e da definição exata das fronteiras administrativas das freguesias criadas. De facto, nos municípios cujas freguesias são agregadas, no todo ou em parte, por alteração do território (Amadora, Caldas da Rainha, Chaves, Ferreira do Zêzere, Figueira da Foz, Ílhavo, Mondim de Basto, Odemira e Vale de Cambra, bem como, noutro plano, Santarém e Golegã), o diploma aprovado apenas disponibiliza mapas genéricos e sem qualquer precisão, usando escalas e coordenadas que permitem variações nas linhas de fronteira no mínimo de centenas de metros. Para além disso não há qualquer descrição textual no articulado desses limites de circunscrição entre freguesias.
Este procedimento contraria tudo o que desde sempre tem sido feito pela Assembleia da República em matéria de alteração de limites administrativos, seja de freguesias, seja de concelhos. Para dar apenas alguns exemplos já da atual legislatura refiram-se os casos da Lei n.º 61/2012, de 6 de Dezembro, “Fixação dos limites territoriais entre os municípios de Faro e de Loulé” e da já referida Lei n.º 56/2012, de 8 de Novembro, “Reorganização administrativa de Lisboa”. Em ambos os casos os limites são definidos de forma precisa e circunstanciada. No caso de Faro e Loulé, são referidos de forma pormenorizada os números dos marcos e respetivas coordenadas, bem como a localização dos marcos, pontos de coordenadas e descrição dos limites, seja na área urbana, seja na não urbana. No caso de Lisboa, para além da descrição rigorosa dos limites de cada freguesia nas suas várias confrontações, foi ainda publicado um mapa que permite visualizar de forma circunstanciada esses limites. Foram aliás imprecisões várias neste mapa e nas referidas descrições que motivaram as várias vicissitudes desse diploma até ao acerto final, o que comprova a indispensabilidade do rigor desses instrumentos.
Outros exemplos poderiam ser dados, como a criação de várias freguesias em diversos concelhos publicada no Diário da República a 12 de Julho de 1997, por exemplo várias no concelho da Amadora que, agora são extintas por este diploma, através da Lei 37/97 de 12 de Julho. A existência de uma Lei para as alterações de cada município evidencia bem a diferença entre o cuidado desse processo, apesar de bastante mais reduzido, e a extinção por agregação ou alteração dos limites de mais de 2000 freguesias, que o diploma agora aprovado pretende fazer através de dois simples anexos.
A não definição em concreto dos limites territoriais das novas freguesias, patente no diploma aprovado, não é evidentemente resolvida pela inserção à última hora de um novo número 4 no artigo 3º em que se remete para um instrumento cartográfico que não é em si a definição dos limites. A referência a esse instrumento cartográfico poderia até fazer sentido se aplicada às freguesias criadas por agregação/extinção e sem alterações territoriais das freguesias originárias. Mas não pode substituir a definição em concreto de novas fronteiras para novas freguesias, cujas variações aliás podiam ser motivo de concordância ou discordância dos deputados no momento da votação.
Os problemas administrativos, de ordenamento do território, de segurança jurídica e até eleitorais que esta situação comporta são bem evidentes. Desde a definição dos registos de propriedade, à competência territorial para a prática de atos administrativos, até à contabilização do território para efeitos de financiamento das freguesias, tudo fica posto em causa com esta incerteza. Não é de somenos realçar nesta matéria a influência da definição dos novos territórios nas próximas eleições autárquicas. A definição do território e da população abrangida por cada freguesia influencia a dimensão dos órgãos a eleger e o próprio universo eleitoral para cada órgão, que pode condicionar os resultados eleitorais obtidos. Incluir ou não mais uma rua ou um quarteirão altera o universo de eleitores para cada freguesia e a indefinição destes limites deixa em aberto a possibilidade da sua manipulação com vista a obter, entre outras, alterações do universo eleitoral tendencialmente mais favoráveis a esta ou àquela candidatura.
Pergunta-se assim quem vai definir em concreto estes limites cuja definição é reserva absoluta de competência da Assembleia da República? O Governo? Cada um dos municípios? Uma empresa de consultoria cartográfica?
A questão da indefinição dos mapas compromete sem dúvida a regularidade do próximo ato eleitoral para as autarquias locais, mas não é o único problema neste campo.
Outra questão decisiva é a da competência para a organização do ato eleitoral nas freguesias alteradas. É sabido que a organização de qualquer ato eleitoral tem nas freguesias um elemento de apoio essencial e com competências próprias a desempenhar. A instabilidade na definição das freguesias constitui por isso um elemento fortemente perturbador do bom funcionamento do ato eleitoral.
Desde logo porque a alteração das freguesias vai obrigar à redefinição, a poucos meses das eleições autárquicas (se outras não existirem antes ainda), dos cadernos eleitorais, ainda a braços com as complexidades derivadas da progressiva generalização do cartão do cidadão. Mas para além disso porque, sendo as eleições neste quadro para novas freguesias, as antigas freguesias extintas não estarão em condições de as preparar, uma vez que continuarão a só ter competências no seu próprio território e não no das restantes a agregar. Dito de outra forma, quem preparará a eleição na União das freguesias A, B e C, uma vez que evidentemente não pode ser uma delas a prepará-las para os três territórios nessa altura (até à nova eleição) ainda vigentes. Para não falar já da mais que provável resistência de muitos autarcas democraticamente eleitos em procederem ao “enterro” das suas próprias freguesias, tarefa para a qual evidentemente não foram eleitos.
O problema complica-se ainda mais quando se analisa a questão das comissões instaladoras. É que o diploma aprovado apenas prevê a existência de comissões instaladoras para as freguesias criadas por alteração dos limites territoriais. Isto é, nas freguesias criadas por agregação não haverá comissões instaladoras, nem sequer para as competências definidas para as criadas por alteração do território, a saber: “as ações necessárias à instalação dos órgãos autárquicos da nova freguesia e executar todos os demais atos preparatórios estritamente necessários à discriminação dos bens, direitos e obrigações, bem como das responsabilidades legais, judiciais e contratuais a transferir para a nova freguesia” (artigo 7º n.º2 do diploma aprovado). Quem desempenhará estas funções nas freguesias criadas por extinção/agregação?
Verifica-se aliás que, mesmo nas freguesias criadas por alteração dos limites territoriais, onde existirão comissões instaladoras, elas não terão a competência de preparação das eleições.
Conclui-se por isso que nas freguesias onde se verificam alterações, seja por agregação, seja por alteração dos limites e ao contrário do que acontece por exemplo na reorganização administrativa de Lisboa (artigo 10º n.º2 alínea a) da Lei 56/2012 de 8 de Novembro), não está definido quem tem a competência de preparação das eleições.
Acrescente-se ainda que a comissão instaladora, sendo nomeada pela câmara municipal respetiva, não tem número definido de membros, mas impõe-se que seja um número par, ao determinar-se a nomeação em igual número de cidadãos eleitores e de membros de órgãos autárquicos (n.º 3 do artigo 7º do diploma aprovado). Para além das questões que pode vir a suscitar a nomeação, pela câmara municipal, em pleno ano eleitoral, de cidadãos eleitores que poderão vir a ser candidatos, a alínea b) do número atrás referido prevê a integração de “Membros dos órgãos deliberativo e executivo, quer do município, quer da freguesia criada por alteração dos limites territoriais”. Ora a nova freguesia, tendo em conta que a comissão instaladora exercerá funções nos últimos quatro meses do atual mandato, ainda não existe juridicamente e naturalmente também não tem órgãos deliberativos e executivos, que só serão eleitos em próxima eleição!
III
Está absolutamente claro que o voto do PCP não poderia deixar de ser contra perante um diploma que, para além de ser um ataque feroz ao poder local democrático e em particular às freguesias, encerra graves atropelos jurídicos, capazes de pôr em causa o funcionamento de muitas freguesias e a regularidade das eleições autárquicas a realizar em 2013.
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É extenso?
É... mas vale a pena ler!
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